O sociólogo da religião não pode continuar pensando
que se pode fazer sociologia propriamente dita sem a crítica da "cultura
capitalista", que passa pela crítica da economia capitalista.
Quando uma igreja visa à maximização dos lucros e ensina seus quadros a
fazerem o mesmo por ela e também para si mesmos, e exorta os conversos e
seguidores a fazerem o mesmo, é sinal de que a lógica da esfera
econômica colonizou a lógica da esfera religiosa.
Com isso, a religião enfraquece sua principal conquista alcançada com a
modernidade, que foi a autonomização das esferas da cultura, como
ensinou Max Weber [1881-1961]. Volta atrás na história.
Muitos sociólogos de hoje veem acertadamente a religião como mercado —
mercado de bens de salvação —, mas já é mais que isso: há outras metas a
alcançar, inclusive as de conteúdo material. No mundo ocidental
contemporâneo, isto é, na sociedade secularizada, há grande competição
entre diferentes religiões, e o crescimento de umas e outras depende do
declínio de pelo menos alguma outra, em número de seguidores, num jogo
de soma zero, evidentemente.
A dinamização recente da concorrência entre os diferentes produtores e
vendedores religiosos — diferentes religiões, igrejas e outros grupos de
culto institucionalizados — pode ser entendida como consequência
histórica e em linha direta da desregulação republicana da esfera
religiosa. Sobretudo na América Latina, tal processo significa a perda
pelo catolicismo de sua reserva de mercado. Acabou-se o monopólio
católico.
Com a possibilidade assim aberta de ativação acrescida de seus agentes
num mercado religioso desmonopolizado, foram sendo alcançados pouco a
pouco níveis mais exigentes de pluralismo religioso, de demarcação mais
nítida da diferença religiosa e, por que não, de conflitividade
multidirecional, por conta dos níveis mais altos de envolvimento
reflexivo dos próprios agentes religiosos com a ideia mesma de
competição religiosa legítima, "natural".
Segue-se a crescente dinamização racionalizada da oferta dos bens de
salvação que os profissionais da religião criam ou, cada vez mais,
copiam uns dos outros, cuja distribuição reciclada administram sempre de
olho na resposta dos muitos adversários.
Cresce mais quem faz melhores ofertas; criar novas necessidades
religiosas é imperativo, regra do mercado. Nesse métier, vale apontar
desde já, têm se esmerado os pentecostais e neopentecostais, mas não só.
A febre é altamente contagiosa. É toda uma positividade de imagem
proativa que termina por granjear mais prestígio e legitimidade social
para as religiões ou religiosidades que melhor souberem vender seu
peixe.
E, já que liberdade religiosa hoje em dia se pratica em chave de
livre-concorrência, todos os profissionais religiosos responsáveis por
esse burburinho são os primeiros a dizerem-se interessados (interessados
por enquanto, é só o que por enquanto faz sentido) em mais e mais
liberdade de crença, culto, expressão, propaganda e marketing. Assim
como em mais isenção (quando não evasão) fiscal, "que ninguém é de
ferro!".
Lá na frente, os agentes da religião não passam de agentes econômicos, e
as igrejas, de empresas. São, agora, também políticos, uma vez que tudo
isso acarreta uma crescente necessidade, por parte das igrejas
competitivas, de se fazerem representar no Parlamento, às vezes com
partido próprio, de onde podem defender seus interesses com a segurança
jurídica e econômica costurada na lei, que ajudam a criar ou a rejeitar.
Como resultado da desregulação, o que se tem é essa abundância de
profissionais religiosos, que vemos, em inaudito ativismo, a suprir o
mercado de novidades religiosas, serviços espirituais, bens simbólicos e
os mais variados artigos de consumo, gerando, em decorrência, teores
mais altos de participação religiosa na população, que produzem um
aquecimento de todo um campo religioso, que se estrutura em moldes
análogos aos de um mercado concorrencial.
Resulta que esses empreendedores religiosos aparecem — assim eles se
apresentam na vida cotidiana — como se mergulhados até o pescoço numa
inadiável disputa por recursos e oportunidades, por mais eficácia e
sucesso na atração de novos consumidores e na fidelização dos já
atraídos. Precisam, pois, de mais fundos econômicos, mais dinheiro e
mais lucro para investir no negócio da religião.
Do lado dos sociólogos, para falar agora das coisas do sagrado, é
necessário passar pela economia da coisa, mergulhada com certeza na
cultura capitalista de uma sociedade irremediavelmente secularizada.
Uma sociedade que não precisa mais de Deus para se legitimar, se manter
coesa, se governar e dar sentido à vida social, mas que, no âmbito dos
indivíduos, consome e paga bem pelos serviços prestados em nome dele.
De modo tão descarado que o princípio de fidelidade dos homens, isto é,
dos fiéis para com Deus, que sustentou a civilização judaico-cristã, e
também a islâmica, desde as origens, agora tem sua direção invertida por
essa nova cristandade que proclama que Deus é fiel, o fiel é Deus.
Investimento seguro, vale dizer.
por Antônio Flávio Pierucci
O sociólogo Flávio Pierucci (foto) morreu aos 67 anos de idade no dia 8
de junho de 2012 vítima de enfarto. Especialista em teologia pela
Pontifícia Universidade Gregoriana, em Roma (Itália), escreveu livros e
artigos sobre religião e política. Era o secretário-geral da Sociedade
Brasileira para o Progresso da Ciência. O texto acima foi cedido à Folha
de S.Paulo pelo sociólogo Reginaldo Prandi, coautor, com Pierucci, em
alguns livros e projetos de pesquisa.
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